sábado, 5 de fevereiro de 2011

O Homem que escrevia bulas de remédio


O homem que escrevia bulas de remédio

Remoardo chegou pelo entardecer ao Cêrro do Bassorão. A longa viagem de quase dois dias da capital da Província, combinada com a falta de sono dos solavancos do velho caminhão leiteiro, um Internacional ano 1956, acionado por manivela para o arranque, que parava de meia em meia hora nas granjas pelo caminho para recolher os tarros de leite e depois entregá-los na cooperativa de Gualhabal do Sul, o deixara em pandarecos. Precisava dum banho. Duma cama limpa. Roupas limpas. Ar limpo, que não cheirasse a bosta de cabrito ou fumaça de óleo do caminhão. Remoardo era um homem letrado. Um literato. um escritor. Homem de hábitos elegantes, sofisticados. Costumava viajar pelo mundo proferindo palestras em universidades, sindicatos, prefeituras, sinagogas, puteiros, e onde quer que seus notáveis conhecimentos fossem requisitados. Era um professor emérito de uma importante universidade no centro do país, e raramente obtinha tempo para se reunir com a familia, nem mesmo em festividades ou férias. Mesmo porque não tinha mais contato com a familia que estava longe. Somente lembranças em sua bagagem surrada e cheia de selos de companhias aéreas colados nela. Outra mala menor levava livros, cadernos e anotações. À mão, pendurado ao braço, o paletó de riscado escuro. Na cabeça, um chapéu estilo Panamá amainava o sol da tarde que fustigava impiedosamente as tardes do Cêrro, e a poeira da estrada não era propriamente o melhor lugar para se estar naquele calor. Os óculos redondos marcavam o rosto magro, de nariz afilado, olhos profundos e pele clara, de cabelos já prateados pela idade que mostrava as marcas.
Remoardo era um homem elegante, de hábitos finos e cultura acima da média. E expressava o melhor desta cultura em sua grande paixão literária. Remoardo escrevia bulas de medicamentos para laboratórios. De aspirina a quimioterápicos, Remoardo era requisitado pelos laboratórios do mundo inteiro para que redigisse as instruções de uso dos remédios que as pessoas usavam na busca de cura de suas enfermidades. Era bem sucedido. Ganhava bem e levava uma vida tranquila. Disse bem: levava! Isso foi antes de voltar para casa no fim de um expediente de trabalho e encontrar uma carta em sua caixa de correio. Haviam muitas cartas. A maioria de mals diretas, publicidade de empresas, de laboratórios, de contas rotineiras. Mas esta carta era diferente. Era suavemente perfumada. Exalava uma fragrância de jasmim do campo. Igual aos jasmins que floresciam expontâneos nas campinas do verde vale que ladeava o Cêrro do Bassorão. Era uma fragrância implícita, discreta, um bouquet, como nos vinhos, que denunciava a origem do emitente, bem como seus hábitos. Carta que fora escrita por mãos delicadas e gentis, e que manusearam o papel e o envelope com sublime saudade.
Ele ainda não havia aberto a carta, mas já seria capaz de ler o seu conteúdo, cujas palavras doces estavam gravadas em suas memórias e em seu coração. Trazia lembranças e revigorava esperança. Era dela a carta. De  Hortênsia. Sobrinha de Carsulina. Menina serelepe, magricela, sardenta, de tranças compridas, vestido de chita com flores bordadas na gola branca e meias surradas escondendo as canelinhas finas e picadas de mosquitos da menina espoleta que passava os dias pipocando de um lado a outro cantarolando e gritando como um passarunho que pula de galho em galho atrás de frutinhas para os filhotes. Ou como os próprios filhotes que pipocam atrás da mãe esperando ganhar insetinhos como sobremesa.
Remoardo havia crescido ao lado de hortênsia. Corria pelas pradarias dela, ou atrás dela. Liam juntos os livros de histórias que encontravam nos armários da Carsulina, e subiam correndo à primeira chamada de Carsulina com seus cafés com mistura, cheios de broas de polvilho e bolinhos fritos com chá de mate.
Porém, a vida sempre separa, em nome da própria vida, as pessoinhas que se querem bem. E a vida um dia separou Remoardo e Hortênsia. Ela permaneceu no Cêrro, aos cuidados da familia, e pipocando pelo quintal da tia. Ele foi enviado à cidade grande para se tornar doutor. Era filho de familia importante e deveria continuar sendo importante. Ou se tornar ainda mais importante do que todos. Como um príncipe que não escolher nascer príncipe, mas que pelo bem do Estado tem que se tornar rei e abdicar de sua vida pessoal, Remoardo não teve escolha, e numa manhã bem cedo, lá estava ele, de terninho claro, calça curta, chapeuzinho e gravatinha borboleta, com sua malinha em punho e olhinhos marejados pela saudade que doía desde aquele instante, olhando para as pessoas que foram se despedir nno postinho de coleta, onde o caminhão leiteiro recolhia tarros e pessoas e os entregava em seus destinos pelo caminho.
Hortênsia estava lá,  se debulhando em prantos e grudada nas pernas de Carsulina, sem nada dizer. Seus olhinhos fitavam implacavelmente o amigo que subia como um autômato na cabine do caminhão e cruzava um último olhar para a amiguinha serelepe. Havia chovido, mas o sol raiava e um arco íris projetava toda a beleza daquele momento como testemunho de tão bela amizade, ou de tamanha dor que presenciava. O caminhão partiu aos solavancos e sumiu no horizonte como um pontinho diminuto que leva embora consigo os amigos e toda alegria que a amizade contém.
Remoardo entrou depressa e largou as coisas em cima da mesa. Menos a carta. Esta levou consigo ao quarto. Sentou na cama e com cuidado de um cirurgião, abriu a carta. Enquanto abria, mais perfume exalava o pequeno envelope. Quanto mais perfume exalava, mais lembranças chegavam na velocidade do pensamento e da saudade. E quanto mais saudade, mas apertava o peito de vontade de ler tudo oq eu havia para ser lido naquela pequena folha de papel perfumado. Remoardo era um homem conectado com o mundo. Não  escrevia mais cartas, apenas e-mails, mensagens isntantâneas. Mas correios eletrônicos não perfumam as mãos. Não se podem dobrar nem guardam as marcas das dobras que representam o tamanho da saudade. Não se colocam em envelopes coloridos, nem podem mostrar as marcas da pressão dos dedos na caneta, ou do nervosismo, da expectativa, da entrega.
"Meu estimado amigo Remoardo" - começava a carta.
"É com imenso prazer que hoje pego na pena para lhe escrever estas poucas e mal traçadas linhas, mas que representam todo o sentimento de afeto e do tamanho da saudade que sinto pelo meu querido amigo"
"Poucas e mal traçadas linhas...pego na pena..." Linguagem há muito esquecida. Não se usam mais penas, nem mesmo canetas. As linhas  não são mal traçadas, porque não existem linhas tortas numa mensagem eletrônica. Palavras tortas talvez. Linhas jamais.
"Hoje o dia está lindo. Nossas primaveras são as primaveras mais belas do mundo. Os jasmins estão floridos e colhi um ramo para enfeitar meu cabelo, como fazia quando brincávamos de escolinha na varanda da casa da Tia carsulina. Apanhei também cerejas maduras  e ouvi o canto do  sabiá que pulava de galho em galho em busca de frutinhas para seus filhotes. Encontrei ainda um ninho de tico-tico escondido no galho daquela laranjeira que tem na entrada da lavoura. Tinha tres filhotinhos já emplumados. Acho que logo irão voar. Mas imagine, e me perdoe. O meu querido amigo deve ser um homem importante e eu fico tomando seu precioso tempo contando coisas de nossa infância. Que boba sou eu. Me perdoe, amigo querido. 
Tive que parar de escrever um pouco, pois meus olhos se converteram em  um lago, igual ao açude onde aprendemos juntos a nadar com as outras crianças aqui do Cêrro. Não escrevi antes, porque não tive coragem de fazer. Todas as vezes que comecei, inhas mãos tremiam. Na verdade escrevi muitas cartas, mas nenhuma ficou do jeito que eu queria. Em nenhuma delas consegui expressar o tamanho da saudade que sinto pelo meu amigo. E também imaginei que estivesse já encontrado uma pessoa, estivesse casado, enfim. Tive medo. Hoje o medo passou e resolvi lhe escrever. Me tornei professora. estudei na escola de meninas da sede do município e hoje sou professora da escolinha aqui do nosso vilarejo. Tia Carsulina ainda me faz passar lá todos os dias e  me serve um lanchinho, e me conta suas historias cheias de humor e sabedoria. Continua uma senhora simples, mas sábia.  Esperta e amiga de todos. É a conselheira aqui do Cêrro, como voce bem lembra. Seu linguajar não mudou, nem suas teorias estapafúrdias, mas eu não teria ninguém nesse mundo de quem gosto de buscar conselhos. É generosa e hospitaleira. Outro dia ainda, em pleno inverno (e você bem sabe como são terríveis nossos invernos), cheguei na escola molhada e congelada, batendo queixo de frio. Minha tia me viu passar e em poucos instantes apareceu na escola com uma lata de docinhos e um bule enorme de chá de mate com leite para as crianças e os deixou entretiddos com o lanche, enquanto me tomou pelo braço e me obrigou a ir consigo até sua casa torcar de roupa, me aquecer, tomar um café bem forte com canela e me resguardar daquela friagem, e só então me permitiu que eu voltasse à minha aula. Contou muitas lorotas para me fazer rir, do seu jeito engraçado de falar, mas jamais encontrei tanta sabedoria e exemplo de bondade cristã numa pessoa.
Mas enfim, querido amigo, me conte de você. O que tem feito? Costuma ainda tomar chá de mate com leite e comer bolinhos fritos nas tardes de chuva? Me conte tudo, e se puder, um dia, venha nos visitar. Venha me visitar.
Com afeto sincero
Hortênsia"
As mãos magras de Remoardo tremiam. Não chorava apenas. Soluçava. O homem se´rio que escrevia bulas estava aos prantos. Segurou a carta por longo tempo com uma mão estendida, e com a outra fechava os olhos e chorava compulsivamente...
A noite chegou e Remoardo já estava bem acomodado  na velha casa de seus pais. Tomara um banho, torcara de roupa e uma sopa de couve com batatas precedia o jantar campeiro, com sobremesa de doce de marmelo e queijo. Era disso que mais gostava quando menino. Comeu e riu. Conversou muito e contou coisas de sua vida. Mas sua conversa era automática. Falava uma coisa e pensava outra. De contínuo, seus pensamentos tentavam reconstruir os fragmentos de lembranças de Hortêsia. Faziam muitos anso que não a via. Como estaria? Seria ainda aquela magricela sardentinha de pernocas finas e janelinha no dente que deixara? Seria gorda?  Alta? baixinha? Feia..NÃO! Feia jamais. Remoardo não ouvia nada do que se falava naquela sala. A euforia da familia não era suficiente para que seus pensamentos sublimassem as lembranças e elocubrações sobre Hortênsia.
Alguém bate à porta. Antes que foisse aberta, já se puve a voz faceira de Carsulina:
- Ô de casa, filho. Abra a porta pruma véia que vem de paz! E prenda o doga antes que me morda as porpa..
Mais que depressa o proprio Remoardo correu e abraçou Carsulina como se abraça a pessoa mais querida desse mundo. Apertou-a  com força sublime para que nenhuma batida do coração se perdesse no vazio, pois as batidas do coração falam em poucos tiquetaques verdadeiros compêndios que não poderiam se ditos pelas palavras. Beijou-a com ternura e por algun sinstantes a imagem de Hortênsia deu lugar ao sorriso de Carsulina com um naco de bolo embaixo dum guardanapo num pratinho branco.
-Filho! Vou pedir licença à sua familia, mas vosmecê percisa vir comigo e  isprementá um docinho que a tia feiz pra vosmecê. Não vá me fazer essa desfeita, senão le rogo uma praga pra que aquele penduricáio que voismecê usa pra mijá vá parar na ponta do nariz!
Remoardo rolava de tanto rir do humor maroto da velhota, e saiu abraçado com ela rumo ao rancho da Leidi do Bassorão. Poucos minutos depois, entram na casa e seus joelhos tremeram tanto que  quase não conseguia ficar de pé. Seu coração acelerou e sua voz embargou.  Os olhos marejados abriam e fechavam para não perder o cenário inesperado.
Uma mesa posta, com bolinhos de arroz, chá de mate, broas de polvilho, uma  toalha branca bordada para ocasiões especiais, flores de jasmim ao centro, e de pé, de  mãos juntadas pela timidez, uma linda moça, esguia, com cabelos escuros e olhos castanhos, vivos, brilhantes,  num vestido claro, bordado com flores na gola, calçando sapatinhos baixinhos que mostravam a elegancia dos pequeninos pés, timidamente virados para dentro à espera de um visitante ilustre.
Um abraço afetuoso de uma eternidade selou a volta do filho ilustre do Cêrro do Bassorão, que gostava de escrever bulas de remédios e de comer bolinhos de arroz com chá de mate na Casa de carsulina. 

*Nota do autor:
O que? Voces achavam que só tinha figura esquisita no Cêrro do Bassorão?  Tá certo. Um cara  inteligente que gosta de escrever bulas de remédios deve ter algum parafuso solto. Mas isso só vamos descobrir mais adiante, em outros causos em que ele vai aparecer. Até lá, foi o que eu consegui para apresentar o bosta aos leitores. É pegar ou largar.

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