quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

Lorotas do Valdemar - O Tombo do perau


Valdemar - Não é lorota: é versão dos fatos

Semana passada descansou um velho e querido amigo: O Valdemar. Companheiro de pescarias, de finais de tarde no trabalho e sobretudo, de causos. Eram causos do cotidiano, contados com alguns enfeites metafóricos e quase sempre hilários, que algumas pessoas inescrupulosas denominavam como mentiras, o que em absoluto não eram. Justiça se faça, mas mentira é uma cois feia, pegajosa e infame. o que Valdemar contava era apenas a sua versão de fatos que com certeza tinham acontecido, em algum lugar, com alguma pessoa, mesmo que esses lugares e pessoas tenham sido apenas em sua prolífica memória e invejável capacidade de finalizar versões e, por que não dizer, algumas inocentes lorotas.
Para evitar especulações, não vou mencionar o sobrenome do imaginativo personagem que com toda certeza existiu e quem o conheceu, vai saber de quem se trata. Do Valdemar.
Nesse blog, vou tentar lembra de alguns dos causos que ouvi pessoalmente o Valdemar contar. Outros, com certeza serei auxiliado pelo testemunho de outros que outras fantabulosas aventuras ouviram o mestre das pescarias contar.

LOROTA UM
O tombo dum perau

Perau, precipício, penhasco, são sinônimos de um acidente geográfico de grandes proporções, de grande altura. Em Gramado é conhecido como Perau mesmo. Lá tem muitos, especialmente na região que divisa com Caxias do Sul e Nova Petrópolis. Uma destas localidades se chama Linha Furna. Ao lado, tem a Linha Quinze, e depois disso, não necessariamente nessa orgem cartográfica, há um vale cortado pelo Rio Santa Cruz, que estabelece a divisa de Gramado com Caxias do Sul.
Este é na maioria das vezes o cenários das lorotas do Valdemar.

Descendente de italianos e tendo quase sempre vivido no interior, Valdemar carregava no sotaque italiano, uma mescla de vêneto com italiano e português antigo. Essa mistura tornava ainda mais interessantes suas narrativas, que ele vivenciava até à alma cada uma delas. Chegava às raias da emoção, porque o principal personagem era geralmente o próprio. E quase sempre, havia testemunhas oculares: falecido fulano, falecido beltrano e falecido cicrano.

Trabalhávamos num porão, a seção de escultura da fábrica, e havia nesse porão, cuja casa estava construída num declive de terreno, uma janela, que dava para o jardim de uma casa, onde Valdemar exercia a função de jardineiro, mordomo e por vezes, administrador de paisagismo.
Nosso horário de trabalho encerrava às dezoito horas, mas lá pelas  quatro da tarde, estava ele debruçado na janela ( de fora para dentro), "queimando campo" (expressão utilizada para expressar alguém contando mentiras), e tínhamos que "abrir as portas para deixar sair a fumaceira" exalada pelas bravatas do colega.
Mas não posso classificar como mentiras, porque não eram. Mentira  é uma coisa feita, grotesca, malfazeja. Valdemar não mentia. Contava sua própria versão fantasiosa dos fatos. Trocava os personagens, mas detalhava com exatidão datas e lugares. E não raro, pessoas.
Era um companheiro agradável em pescaria. E como não seria? Tem coisa mais enfadonha do que uma pescaria sem um hábil contador de causos? E tem o pós-pescaria, que é exatamente quando todos ávidos por umas boas risadas, se enfileiravam à volta do bule de café da tarde num gazebo da fábrica onde nos reuníamos, para tentar contar nossas próprias lorotas ou debochar de algum novato ou incauto colega. Mas reconhecidamente e com justiça nos calávamos quando era a vez do Valdemar.
Valdemar se calou, mas vou tentar resgatar suas lorotas. Muitas lembro eu mesmo, porque presenciei ou foram contadas a mim. Outras, vou buscar com amigos ( e amigos não lhe faltavam) que conheciam outras versões das mesmas histórias ornamentadas pela ingênua esperteza do nosso amigo Valdemar.

O Causo do Tombo


O causo do tombo

Como falei no blog anterior, vou contar o causo do tombo.
Nos escarpados e perigosos penhascos da Linha Furna, certa feita - contou Valdemar, estava procurando alguma rês perdida ou algo parecido. Neste episódio, há duas versões conhecidas.  Na primeira, estava Valdemar só, quando do alto de 72 metros de altura despencou barranco abaixo.
Narra ele com seu sotaque forte:

-" Má xácramento, tchó. Eu dechpenquei baranco abasso e a velochidade omentáva cada veix maix. Io non xabia como ia me dexpencá lá embasso nas pedra.  No caminho, tinha uma pedra espetada no baranco. Me abracei nela e ela xe xoltô e veio zunto. Cráaamento!! Quando vi que ia me isboraçá, xoltei a pedra e ela caiu na minha frente, porque era maix pejáda de que eu ( aí Valdemar já conseguiu burlar a lei de Newton). Espicei o pé e toquei no baranco pra cair lonze da pedra. Má como io tava com bom reflésso, dí uma viravollta e caí dimpé no çón. Nada me acontexeu, xó uns aranhón.  E meus pé que inçô. Tive que cortá as bota pra arancá os pé de fora. Má quando foi de noite, zá fui puçá um baile, de cinéla de dedo, tchó!".

Lorotas do Valdemar


O caso da Kombi

Valdemar não poupava causo. Lá pelas quatro e meia da tarde, lá estava ele, sorrateiro, chegando de mansinho no local onde trabalhávamos. Nosso horário de encerramento das atividades era às 18 horas. Ele deveria encerrar às 17 horas. Disse bem: Deveria!
No sul costumamos dizer que quando alguém está atochando, está "queimando campo". E os adjetivos acessórios são relacionados ao tema: fumaceira, largando fumaça, etc. Por vezes, quando ele chegava, sutilmente um abria a porta. Era um código nosso para comentar que alguém está exagerando no tamanho do feito. Contanto lorota. E para cada assunto, Valdemar tinha uma lorota na ponta da língua.
Pois numa dessas, Valdemar contou que certa feita fora a um baile de interior. Lá os bailes acontecem nos clubes das colônias, na roça, onde as pessoas simples, brejeiras até algumas, levavam a familia inteira aos bailes. As mulheres chegavam a levar os bebês, e enquanto os maridos ficavam jogando cartas ou tomando cerveja pelas mesas e contando vantagens, na companhia dos amigos, as mulheres, submissas, amamentavam os bebês e ficavam olhando com olhar perdido para o salão. Madrugada adentro.
Iam também, naturalmente, as moçoilas mais afoitas, em busca de romances. E atrás das afotas, compareciam os galalaus, em busca de farra simplesmente. Valdemar, solteiro, era um deles.
Segundo contava ele, era um insaciável. E nessa fome toda, contou uma coisa bem coriqueira, simples e comum, para não dizer vulgar. Coisa que acontece a todos o tempo todo. E também, porque não, com ele. Aconteceu. Foi, segundo ele proprio e mais sete testemunhas ( infelizmente todas no repouso eterno), num baile de sábado à noite, no Salão da Linha Furna ( ou linha Quinze, isso não lembro direito), que ele tava que tava. Encontrou uma velha namorada, solitária, e zás!!! Consolou a moça. Mals se despediu, e encontrou a segunda amiga...zupt!!! Lá foi ela pra fritura. E assim, uma a uma, foram sete, na mesma noite. Resultado: um priapismo que o deixou envergonhado. Não havia mais jeito de acalmar os ânimos do seu coleguinha. O que fez então? Deitou-se ao lado da Kombi que o levara ao baile, estacionada na margem do rio, E ali, deitado de bruços, urinou no rio, por cima da kombi, sem molhar o veículo. Mas mesmo assim, continuou em situação vexatória. Foi aí que buscou a solução definitiva: Mergulhou no rio.
De longe, seus amigos ouviram o som de uma brasa se apagando na água, um chiado fino e uma nuvem de vapor subindo rumo à esuridão do universo.

Pegando Tiriscos


PEGANDO TIRISCO


TIRISCO

Do Teuto-latino Wilfrützengnauptenschnaps bula bula-Tiriscus bagacialliys, Pum, pum

Trata-se dum ser completamente inofensivo, porém perseguido incansavelmente desde os primórdios dos acampamentos e internatos masculinos. Segundo os especialistas, Dr PhD, Master y Blaster, Newman Schwantzigsten Prosit III, e Dr. Phd Ballayubacus Balacubacus, da Czenszkolovenskuticuti University, há cerca de vinte a oito espécies catalogadas, porém jamais fotografadas da criatura, retratada pelas seguintes condições:
É peludinho, gordinho, olhos esbugalhados, tem voz rouca, gosta de bebicas alcoólicas, especialmente aguardentes, costuma reunir-se em bandos para cercar lavouras, e são arredios, pois embora sempre presentes em brejos e matagais, também são encontrados nas cidades mais industrializadas, porque se familiarizam com as fábricas de automóveis e metalurgicas, ambiente que lhes favorece a engorda.
Mas preferencialmente são jamais encontrados em acampamentos de escoteiros, desbravadores, bandeirantes, embora sejam sempre motivo de incansável busca pelos participantes novatos.
Neste forum vamos reunir especialistas no assunto e por meio intuitivo e pela lógica do debate, formularemos propostas que devem chegar a uma apresentação do espécime, que também não se tem a certeza de que seja animal, vegetal, fungi ou politico.
MAFAGAFOS
Quero acrescentar que, segundo a antiga Encyclopaedia Universalis Naturalis et artificialiys des coiseés absurdées, Cazuza Ferreira, 1776, há um assemelhado parentesco do Tirisco com outro espécime, ainda mais raro e arredio, o MAFAGAFO ( Mafagafus Fus Fus, Scrementuallis Pum pum). Este indivíduo é ainda mais esperto e se prolifera em maior numero e velocidade. Cada ninhada sempre vem em numero de sete indivíduos, que mamam na mafagava fêmea durante a vida toda infantil. Em geral, se evadem do aleitamento, chamado também de "Ato de Desmafagafear", o que tem que ser feito aos sete duma vez, e a tradição impõe que o afortunado desmafagafeador dos sete mafagafos com a mamãe mafagafa, recebe honrarias como melhor desmafagafeador da aldeia. Em geral, estes indivíduos pertencem à uma categoria que se julga superior e também vive aos bandos. Sua espécie está entre animal, fungi e politico.
Carsulina certa ocasião pensou em iniciar uma criação deste espécime, mas logo desistiu, pois os juros dos financiamentos oficiais eram extorsivos demais. Foi aí que Carsulina descobriu que é mais fácil conseguir dinheiro pra criar Tiriscos e Mafagafos do que para produzir bens de consumo ou investir em educação. Daí, ainda está matutando sobre a possibilidade de abrir uma escola para Mafagafos com incentivos públicos.

quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

O causo do anjo da cantina do Frei Uomo


O causo  do Anjo da cantina do Frei Uomo

Frei Uomo tinha uma pequena vinha plantada, e dela, todos os anos colhia os frutos e produzia o vinho que utilizava durante o ano, tanto nas missas, quanto para uso pessoal, e nos encontros com os amigos. 
Para as missas, deixava guardado o vinho puro. Para os amigos, misturava açucar e um pouco de cachaça, porque o que interessava era a tonturinha que dava e não tanto o sabor, e de "bouquet" nem passavam perto de saber do que se tratava. Desta forma, fazia render o vinho. Costume que não é diferente nas casas de café colonial que servem o famoso "vinho de missa" à vontade junto com os petiscos.  O que não contam é que a "cantina da casa" fica ali atrás, na cozinha, onde pegam vinho de garrafão e adicionam melado com água e corante, que não faz nenhum mal e até deixa mais docinho o tal vinho.
Pois bem. Numa certa noite, já altas horas, o Frei acordou com o latido dos cuscos. Fez silêncio para ouvir melhor, e resolveu levantar sorrateiro para ver do que se tratava. Foi lá fora e não viu nada. Olhou para os lados, para longe, para o céu, e nada. Noite limpa, céu claro, um friozinho costumeiro, mas havia algo estranho. Os cuscos não latiam por latir. Um bicho, talvez uma raposa. Não o galinheiro estava em silêncio. Aí deu um estalo: a cantina!
Meteu a mão na sua velha pinga fogo, pegou um lampião e foi devagarinho até a cantina. A porta estava destrancada. Entreo com cuidado, engatilhou a espingarda e berrou:
-Quem tá aí?
Silêncio. Gritou novamente:
-Fala quem tá aí senão eu hei  de lhe pregar  fogo!
Uma voz trêmula saiu do fundo de uma pipa:
- Sô ieu, padre!
O Frei arregalou o olho e em posição de aletra berrou?
-"Ieu" quem, desgramado? Fala logo, porque vai tomar tiro de sal na bunda! Rogo-lhe as pragas apocalípsias de arremate!
A voz embargada, apavorada diante da ameaça, que muito comumente era aplicada aos piás malevas que roubavam frutas nos pomares, e no dia seguinte apareciam mancando pra Carsulina aplicar um cataplasma, onde eram denunciados pelo ferimento humilhante, balbuciou baixinho e com doçura:
-Sou um Anjo, padre....
O Frei deu um sorriso discreto e malicioso e percebeu tudo, mas continuou com a farsa:
-Se for um Anjo de verdade, então voa pra eu ver!
A voz já aos prantos e humilhada respondeu de pronto:
-Num posso avoá, padre. Sô só um fiotão!
No dia seguinte bem cedo, Carsulina preparava um cataplasma para aplicar no Birruga.

domingo, 6 de fevereiro de 2011

Da Astrolojia à Pecicolojia


Da Astrolojia à Pecicolojia

Carsulina era crente. Cria em tudo. Mas ao mesmo tempo, desconfiava de tudo também. Homem na lua? Ouviu falar e não duvidava. Mas não do jeito que contavam. Foguete nada. Viagem decente tinha que ser em lombo de mula pra não arriar no meio do caminho. Daí, em sua imaginação,tinham achado um jeito de apinchar uma mula com gente montada numa hora em que a lua estivesse bem perto da terra, lá na linha do horizonte. Era um "upa" e estavam na lua. E pra voltar, a mesma coisa: enchia os jacás com queijo no rancho do são jorge. Tomavam umas cuias de mate e uma costela de dragão na brasa, e depois voltavam. Era simples. Cousa corriqueira. Era desse jeito que Carsulina explicava as coisas difíceis ao povo simplório do Cêrro do Bassorão.
Horóscopo. Esse era ainda mais fácil de explicar, pois já que achava tudo um amontoado de bobajada mesmo, Carsulina criou um jeito de formular seus próprios signos. Por exemplo: Touro, não era mais touro, pois por ser um aminal veiáco e pulador de cercas, foi capado e tornou-se boi. Manso e gordo. Dominava o pasto, mas era bom pra puxar carroça. Então, um bicho assim tão sem vontade, embora forte, como poderia orientar os destinos das pessoas nascidas sob o mesmo curral e na data que comemorava exatamente sua capação?
Da mesma forma, era com Áries. O nome era pomposo, mas o bicho, francamente, não passava de um bode. E todo bode fede. Daí Carsulina estabeleceu que todo fedorento, mesmo que nascido em outra data do calendário astral, ao qual chamava de "oroscopista", estava sob a regencia do bode, e como tal, ainda sujeito a outros atributos do bicho, que não convém comentar aqui, porque este causo também pode ser lido por menores.
Câncer. O nome feio Carsulina trocou por "Churrio". Que dava no mesmo, pois em anos passados, churrio matava mais do que infarto ou câncer mesmo. Então pressupunha cousa cabulosa, pessoa de genio empertigado e que carecia de observância permanente.
Sagitário, era o mais divertido. Recebeu a alcunha de "Pocotó". Carsulina achava muito simpático aquele arqueiro metade homem, metade cavalo e metade outra coisa qualquer que não convém nominar.
Peixes, lá no Bassorão era "Lambari". O bão era comê-los fritos, bem torradinhos, com pão de mío.
Libra, Carsulina ensinava que era uma balancinha de medir a verdade, e era frequente pegar algum mentiroso contando lorota dizendo que era do signo da "balancinha de pegá veiáco". O sujeito perdia o rumo do que estava mentindo e logo travava.
Desta forma, Carsulina quebrou o costume do povo não dar um peido sem consultar os presságios, e ainda dar umas boas risadas quando surgia uma adversidade. Carsulina ensinou às pessoas que existem certas regras de bons procedimentos que devem nortear nossas ações, mas que não determinam nossos passos que são apenas nossos, e quem nenhuma estrela que desaparece atrás da primeira nuvem, será capaz de dizer que o sujeito é bom, mau, covarde, valente, altruita ou de outro jeito qualquer. Era uma velhota rude, mas não era ignorante. Usava a "pecicolojia" para endereitar de um modo divertido e maroto, o caráter de seus afilhados. E ainda dava boas risadas, pois era esse seu jeito de driblar infortunios.

sábado, 5 de fevereiro de 2011

O Homem que escrevia bulas de remédio


O homem que escrevia bulas de remédio

Remoardo chegou pelo entardecer ao Cêrro do Bassorão. A longa viagem de quase dois dias da capital da Província, combinada com a falta de sono dos solavancos do velho caminhão leiteiro, um Internacional ano 1956, acionado por manivela para o arranque, que parava de meia em meia hora nas granjas pelo caminho para recolher os tarros de leite e depois entregá-los na cooperativa de Gualhabal do Sul, o deixara em pandarecos. Precisava dum banho. Duma cama limpa. Roupas limpas. Ar limpo, que não cheirasse a bosta de cabrito ou fumaça de óleo do caminhão. Remoardo era um homem letrado. Um literato. um escritor. Homem de hábitos elegantes, sofisticados. Costumava viajar pelo mundo proferindo palestras em universidades, sindicatos, prefeituras, sinagogas, puteiros, e onde quer que seus notáveis conhecimentos fossem requisitados. Era um professor emérito de uma importante universidade no centro do país, e raramente obtinha tempo para se reunir com a familia, nem mesmo em festividades ou férias. Mesmo porque não tinha mais contato com a familia que estava longe. Somente lembranças em sua bagagem surrada e cheia de selos de companhias aéreas colados nela. Outra mala menor levava livros, cadernos e anotações. À mão, pendurado ao braço, o paletó de riscado escuro. Na cabeça, um chapéu estilo Panamá amainava o sol da tarde que fustigava impiedosamente as tardes do Cêrro, e a poeira da estrada não era propriamente o melhor lugar para se estar naquele calor. Os óculos redondos marcavam o rosto magro, de nariz afilado, olhos profundos e pele clara, de cabelos já prateados pela idade que mostrava as marcas.
Remoardo era um homem elegante, de hábitos finos e cultura acima da média. E expressava o melhor desta cultura em sua grande paixão literária. Remoardo escrevia bulas de medicamentos para laboratórios. De aspirina a quimioterápicos, Remoardo era requisitado pelos laboratórios do mundo inteiro para que redigisse as instruções de uso dos remédios que as pessoas usavam na busca de cura de suas enfermidades. Era bem sucedido. Ganhava bem e levava uma vida tranquila. Disse bem: levava! Isso foi antes de voltar para casa no fim de um expediente de trabalho e encontrar uma carta em sua caixa de correio. Haviam muitas cartas. A maioria de mals diretas, publicidade de empresas, de laboratórios, de contas rotineiras. Mas esta carta era diferente. Era suavemente perfumada. Exalava uma fragrância de jasmim do campo. Igual aos jasmins que floresciam expontâneos nas campinas do verde vale que ladeava o Cêrro do Bassorão. Era uma fragrância implícita, discreta, um bouquet, como nos vinhos, que denunciava a origem do emitente, bem como seus hábitos. Carta que fora escrita por mãos delicadas e gentis, e que manusearam o papel e o envelope com sublime saudade.
Ele ainda não havia aberto a carta, mas já seria capaz de ler o seu conteúdo, cujas palavras doces estavam gravadas em suas memórias e em seu coração. Trazia lembranças e revigorava esperança. Era dela a carta. De  Hortênsia. Sobrinha de Carsulina. Menina serelepe, magricela, sardenta, de tranças compridas, vestido de chita com flores bordadas na gola branca e meias surradas escondendo as canelinhas finas e picadas de mosquitos da menina espoleta que passava os dias pipocando de um lado a outro cantarolando e gritando como um passarunho que pula de galho em galho atrás de frutinhas para os filhotes. Ou como os próprios filhotes que pipocam atrás da mãe esperando ganhar insetinhos como sobremesa.
Remoardo havia crescido ao lado de hortênsia. Corria pelas pradarias dela, ou atrás dela. Liam juntos os livros de histórias que encontravam nos armários da Carsulina, e subiam correndo à primeira chamada de Carsulina com seus cafés com mistura, cheios de broas de polvilho e bolinhos fritos com chá de mate.
Porém, a vida sempre separa, em nome da própria vida, as pessoinhas que se querem bem. E a vida um dia separou Remoardo e Hortênsia. Ela permaneceu no Cêrro, aos cuidados da familia, e pipocando pelo quintal da tia. Ele foi enviado à cidade grande para se tornar doutor. Era filho de familia importante e deveria continuar sendo importante. Ou se tornar ainda mais importante do que todos. Como um príncipe que não escolher nascer príncipe, mas que pelo bem do Estado tem que se tornar rei e abdicar de sua vida pessoal, Remoardo não teve escolha, e numa manhã bem cedo, lá estava ele, de terninho claro, calça curta, chapeuzinho e gravatinha borboleta, com sua malinha em punho e olhinhos marejados pela saudade que doía desde aquele instante, olhando para as pessoas que foram se despedir nno postinho de coleta, onde o caminhão leiteiro recolhia tarros e pessoas e os entregava em seus destinos pelo caminho.
Hortênsia estava lá,  se debulhando em prantos e grudada nas pernas de Carsulina, sem nada dizer. Seus olhinhos fitavam implacavelmente o amigo que subia como um autômato na cabine do caminhão e cruzava um último olhar para a amiguinha serelepe. Havia chovido, mas o sol raiava e um arco íris projetava toda a beleza daquele momento como testemunho de tão bela amizade, ou de tamanha dor que presenciava. O caminhão partiu aos solavancos e sumiu no horizonte como um pontinho diminuto que leva embora consigo os amigos e toda alegria que a amizade contém.
Remoardo entrou depressa e largou as coisas em cima da mesa. Menos a carta. Esta levou consigo ao quarto. Sentou na cama e com cuidado de um cirurgião, abriu a carta. Enquanto abria, mais perfume exalava o pequeno envelope. Quanto mais perfume exalava, mais lembranças chegavam na velocidade do pensamento e da saudade. E quanto mais saudade, mas apertava o peito de vontade de ler tudo oq eu havia para ser lido naquela pequena folha de papel perfumado. Remoardo era um homem conectado com o mundo. Não  escrevia mais cartas, apenas e-mails, mensagens isntantâneas. Mas correios eletrônicos não perfumam as mãos. Não se podem dobrar nem guardam as marcas das dobras que representam o tamanho da saudade. Não se colocam em envelopes coloridos, nem podem mostrar as marcas da pressão dos dedos na caneta, ou do nervosismo, da expectativa, da entrega.
"Meu estimado amigo Remoardo" - começava a carta.
"É com imenso prazer que hoje pego na pena para lhe escrever estas poucas e mal traçadas linhas, mas que representam todo o sentimento de afeto e do tamanho da saudade que sinto pelo meu querido amigo"
"Poucas e mal traçadas linhas...pego na pena..." Linguagem há muito esquecida. Não se usam mais penas, nem mesmo canetas. As linhas  não são mal traçadas, porque não existem linhas tortas numa mensagem eletrônica. Palavras tortas talvez. Linhas jamais.
"Hoje o dia está lindo. Nossas primaveras são as primaveras mais belas do mundo. Os jasmins estão floridos e colhi um ramo para enfeitar meu cabelo, como fazia quando brincávamos de escolinha na varanda da casa da Tia carsulina. Apanhei também cerejas maduras  e ouvi o canto do  sabiá que pulava de galho em galho em busca de frutinhas para seus filhotes. Encontrei ainda um ninho de tico-tico escondido no galho daquela laranjeira que tem na entrada da lavoura. Tinha tres filhotinhos já emplumados. Acho que logo irão voar. Mas imagine, e me perdoe. O meu querido amigo deve ser um homem importante e eu fico tomando seu precioso tempo contando coisas de nossa infância. Que boba sou eu. Me perdoe, amigo querido. 
Tive que parar de escrever um pouco, pois meus olhos se converteram em  um lago, igual ao açude onde aprendemos juntos a nadar com as outras crianças aqui do Cêrro. Não escrevi antes, porque não tive coragem de fazer. Todas as vezes que comecei, inhas mãos tremiam. Na verdade escrevi muitas cartas, mas nenhuma ficou do jeito que eu queria. Em nenhuma delas consegui expressar o tamanho da saudade que sinto pelo meu amigo. E também imaginei que estivesse já encontrado uma pessoa, estivesse casado, enfim. Tive medo. Hoje o medo passou e resolvi lhe escrever. Me tornei professora. estudei na escola de meninas da sede do município e hoje sou professora da escolinha aqui do nosso vilarejo. Tia Carsulina ainda me faz passar lá todos os dias e  me serve um lanchinho, e me conta suas historias cheias de humor e sabedoria. Continua uma senhora simples, mas sábia.  Esperta e amiga de todos. É a conselheira aqui do Cêrro, como voce bem lembra. Seu linguajar não mudou, nem suas teorias estapafúrdias, mas eu não teria ninguém nesse mundo de quem gosto de buscar conselhos. É generosa e hospitaleira. Outro dia ainda, em pleno inverno (e você bem sabe como são terríveis nossos invernos), cheguei na escola molhada e congelada, batendo queixo de frio. Minha tia me viu passar e em poucos instantes apareceu na escola com uma lata de docinhos e um bule enorme de chá de mate com leite para as crianças e os deixou entretiddos com o lanche, enquanto me tomou pelo braço e me obrigou a ir consigo até sua casa torcar de roupa, me aquecer, tomar um café bem forte com canela e me resguardar daquela friagem, e só então me permitiu que eu voltasse à minha aula. Contou muitas lorotas para me fazer rir, do seu jeito engraçado de falar, mas jamais encontrei tanta sabedoria e exemplo de bondade cristã numa pessoa.
Mas enfim, querido amigo, me conte de você. O que tem feito? Costuma ainda tomar chá de mate com leite e comer bolinhos fritos nas tardes de chuva? Me conte tudo, e se puder, um dia, venha nos visitar. Venha me visitar.
Com afeto sincero
Hortênsia"
As mãos magras de Remoardo tremiam. Não chorava apenas. Soluçava. O homem se´rio que escrevia bulas estava aos prantos. Segurou a carta por longo tempo com uma mão estendida, e com a outra fechava os olhos e chorava compulsivamente...
A noite chegou e Remoardo já estava bem acomodado  na velha casa de seus pais. Tomara um banho, torcara de roupa e uma sopa de couve com batatas precedia o jantar campeiro, com sobremesa de doce de marmelo e queijo. Era disso que mais gostava quando menino. Comeu e riu. Conversou muito e contou coisas de sua vida. Mas sua conversa era automática. Falava uma coisa e pensava outra. De contínuo, seus pensamentos tentavam reconstruir os fragmentos de lembranças de Hortêsia. Faziam muitos anso que não a via. Como estaria? Seria ainda aquela magricela sardentinha de pernocas finas e janelinha no dente que deixara? Seria gorda?  Alta? baixinha? Feia..NÃO! Feia jamais. Remoardo não ouvia nada do que se falava naquela sala. A euforia da familia não era suficiente para que seus pensamentos sublimassem as lembranças e elocubrações sobre Hortênsia.
Alguém bate à porta. Antes que foisse aberta, já se puve a voz faceira de Carsulina:
- Ô de casa, filho. Abra a porta pruma véia que vem de paz! E prenda o doga antes que me morda as porpa..
Mais que depressa o proprio Remoardo correu e abraçou Carsulina como se abraça a pessoa mais querida desse mundo. Apertou-a  com força sublime para que nenhuma batida do coração se perdesse no vazio, pois as batidas do coração falam em poucos tiquetaques verdadeiros compêndios que não poderiam se ditos pelas palavras. Beijou-a com ternura e por algun sinstantes a imagem de Hortênsia deu lugar ao sorriso de Carsulina com um naco de bolo embaixo dum guardanapo num pratinho branco.
-Filho! Vou pedir licença à sua familia, mas vosmecê percisa vir comigo e  isprementá um docinho que a tia feiz pra vosmecê. Não vá me fazer essa desfeita, senão le rogo uma praga pra que aquele penduricáio que voismecê usa pra mijá vá parar na ponta do nariz!
Remoardo rolava de tanto rir do humor maroto da velhota, e saiu abraçado com ela rumo ao rancho da Leidi do Bassorão. Poucos minutos depois, entram na casa e seus joelhos tremeram tanto que  quase não conseguia ficar de pé. Seu coração acelerou e sua voz embargou.  Os olhos marejados abriam e fechavam para não perder o cenário inesperado.
Uma mesa posta, com bolinhos de arroz, chá de mate, broas de polvilho, uma  toalha branca bordada para ocasiões especiais, flores de jasmim ao centro, e de pé, de  mãos juntadas pela timidez, uma linda moça, esguia, com cabelos escuros e olhos castanhos, vivos, brilhantes,  num vestido claro, bordado com flores na gola, calçando sapatinhos baixinhos que mostravam a elegancia dos pequeninos pés, timidamente virados para dentro à espera de um visitante ilustre.
Um abraço afetuoso de uma eternidade selou a volta do filho ilustre do Cêrro do Bassorão, que gostava de escrever bulas de remédios e de comer bolinhos de arroz com chá de mate na Casa de carsulina. 

*Nota do autor:
O que? Voces achavam que só tinha figura esquisita no Cêrro do Bassorão?  Tá certo. Um cara  inteligente que gosta de escrever bulas de remédios deve ter algum parafuso solto. Mas isso só vamos descobrir mais adiante, em outros causos em que ele vai aparecer. Até lá, foi o que eu consegui para apresentar o bosta aos leitores. É pegar ou largar.

quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

Carteira de Bandido


A Carteira de Bandido

Torresmo era bandido. Não era qualquer bandido. Era bandido concursado. Bandido federal. Tinha carteira de bandido válida em 32 países. Mafioso. De Palermo. Por isso era chamado de palerma. Talve fosse. nunca se sabe. pouco se sabe dos mafiosos. Foi morar no Cêrro do Bassorão por uns tempos para sair de circulação. Levou pouca coisa consigo. Apenas a roupa, um chapéu e sua carteira de bandido. 
Valia muito uma carteira de bandido válida em 32 países. Era um salvo conduto em certos lugares. Na capital federal, uns figurões enlouqueceram quando viram uma destas. Ofereceram muito a ele. Dinheiro grosso. Mas nada o tentava. Era uma carteira conseguida na raça. Por mérito. Só uma vez balançou com uma oferta. Um Monza 83, mas motor 84 retificado. Parachoque original. Era demais. Mas ele resistiu e caiu fora.  Teve medo de ser roubado e saiu de lá. Era um lugar cheio de gente mal intencionada. Não. Ele era bandido, mas tinha principios. Não se misturava com esse tipo de gente. perigosa demais. Até mesmo pra bandido. Com carteirinha da bandido. Válida em 32 países.
Chegou no cêrro à noitinha e ficou na hospedaria atrás do bolicho do Tuiuco. Não deu seu nome verdadeiro. Nem sabia mesmo. E se soubese, nem a pau contava. Era bandido confiável. Tinha carteira de bandido. Válida em 32 países. Carimbada em 76. Pagou adiantado. Seis meses. Em dinheiro.  E se instalou ali. Fez amizades com o populacho. Em pouco tempo era do populacho.
Conheceu o Frei Uomo numa noite de carteado. Não jogava truco. Teve que aprender. Aprendeu. Se tornou campeão de truco e amigo do Frei.
Um dia apareceu no confessionário e desabafou com o padre:
- Sou pecador, padre. Me perdoe senão te arrebento. Chamo meus bandidos e mando passar fogo na tua batina contigo dentro. Eu pequei. E estou arrependido. 
O frei matutou e perguntou:
- Conte o que fez, meu filho!
Torresmo deu um pulo e sacou a arma. Arregalou o olho e sentenciou:
- Não vim aqui me gabar, padre. Vim me humilhar. Não conto nem tapado de mutuca!
O padre arregalou o olho e perguntou:
-E foram muitas vezes?
- Isso também não conto. Nem a pau!
- Alguém mais sabe?
-Ninguém.
O padre insistiu:
-Se não me contar, não tenho como saber.
-Pois bem. Vou contar! Tenho uma tara. Gosto de ir visitar as percantas e dou a elas duzentos contos, enquanto a tabela delas é de apenas cinquenta contos. E despois eu desato a xingar.
- E xinga muito?
- Não. Só até que me devolvam os duzentos.  Aí mostro minha carteira de bandido válida em 32 países.
O padre arregalou os olhos e bebericou uns goles para segurar o riso.
Dito isso, Torresmo se deu conta que confessara um segredo capital. Pegou a mala e sumiu mundo a fora. Levou consigo apenas seu chapéu e sua carteira de bandido. Válida em 32 países. Inclusive em Brasília.

Poema da Carsulina

Poema da Carsulina

Frô que nasce na montanha
cujas fôia são cheroza
mas tem a casca espinhosa
que furunga nas zoreia
quando umaa mão devorteia
sobre a mão de outra frô.
Sou uma frô tão fromosa
daquelas frô mais bunita
que mais encanta os cabôco
sou chamada de madrinha
por todas as creancinha
que arrodeiam o meu rancho.
Quando óio seus zóinho
seu sorrizo e brincaderas
se alembro que sou partêra
e trabaio feito lôco
mas com orgúio me chamo
Carsulina Arrancatôco!

CARSULINA EM BRASÍLIA

Carsulina em Brasília


O país estava mudando. O mundo havia mudado. E carsulina também mudou. Mudou as carsola. Afinal era janeiro. Em janeiro as pessoas normais tomam banho. E quem toma banho, muda de roupa. Pelo menos a de baixo. Os trajes menores. carsulina mudou. Porque o mundo havia mudado. 
Não era apenas a benzedeira e parteira do Cêrro do Bassorão. Era tamb´m madrinha daquele povo todo. Ou de batizado, ou de casamento. E todos lhe deviam respeito. E afeição. E cumpriam fielmente com as obrigações. Não passava um único dia sem que uma alma confusa não estivesse às voltas com algum "consêio" de Carsulina. Ela aconselhava de tudo e a todos. De unha encravada à constipação, dor no "figo", inchume, "churrio" e outros malefícios que apareciam. A todos, carsulina recebia sempre com uma hospitalidade que só existe ainda em lugares como o Cêrro do Bassorão. Encravado em algum lugar esquecido, onde também esquecida fica a rede de intrigas das cidades grandes. O Bassorão era um daqueles lugares que a gente sonha morar um dia, num daqueles dias que o mundo desaba nas nossas costas e queremos nos enfiar numa toca até que o mundo passe. A toca existe. É o Bassorão. E quando encontrá-lo, não será dificil achar um rancho de tábuas cruas envelhecidas e acinzentadas pelo tempo, com uma chaminé torta fumegante, atrás de uma cerca de taquaras que protege uma lavoura recheada de frutas, flores, verduras e simpatias. E dentro dele, uma senhorinha que lê antigas edições das Seleções, que ela chama de "Seleção do Redigesta". Lê e relê velhas historias e as conta à piazada que devorteia o rancho à espera duns caramelos.
Carsulina foi nomeada intendente do Cêrro do Bassorão, mas sua jurisdição se estendia muito além da Coxilha Bermeia, cruzando o Arroio dos Caborteros e avançando sobre mais dois vilarejos menores encravados entre os capões do Santa Esmerarda, outro arroio que se encontra com o caborteros. E sob tal condição, foi chamada à sede do governo central para  dar um parecer sobre uma verba para a cachaçaria do Minhoca, petição antiga e que agora, com a troca de governo, parecia estar proxima de ser liberada.
Iria de charrete até a sede do município, e de lá, de caminhão leiteiro até a capital da província, onde tomaria um avião até a Capital federal. A viagem seria longa. Dois dias até a sede e tres horas até Brasilia num vôo direto.
Na capital, seria recebida pelo Deputado  Gaudelino, que a acompanharia até o Ministério, e depois iria almoçar com "A Home". Ela mesma: A Home, a chefa. a capitona, a guasca, a que manda prender e manda soltar. A Presidenta.
Carsulina prepara uma guaiaca recheada de goloseimas para se distrair na viagem: charque de capivara, doce de gila, um torresminho, pão de milho e umas bolachas com canela, e uma guampa de café com leite. E bota o lombo no mundo rumo à capital.
Lá chegando, cumpre suas obrigações no Ministério, e ruma ao Planalto para o tal almoço. Mas oh, que surpresa!
Carsulina nunca foi de luxo, e na sua imaginação, seria recebida com um cumprimento simpatico, um quebra costela meio timido, um cantinho no fundo da mesa e só. Mas nada disso aconteceu: Carsulina foi recebida na porta do Palácio, melhor dito, na Rampa, pela Chefa, ela mesma: a Presidenta!
Abraço daqui, beijinhos dali, um tabefe nas costas acolá, e Carsulina lascou:
-Bão?
-Bão, uai!
- Pous então te meteste na peleia mesmo, cumadre? Não tiveste medo da cousa?
- Uai, sô! - Respondeu a chefa.  Mór diquê eu ia tê mêdo, uai? Aqui é tudo capiau e 
eu sô minêra, uai. Custumada a capá porco a tapa e dispois mandá pra banha. Tenho medo não, uai.
E emendou:
-Iscuita, Carsola! Ocê tá com munta fome, uai?
-Não, filha. Vosmecê tá?
-Ô não, uai! Ontonce, bamo dá uns devorteio na capitar mor de eu mostrá a cidade procê, uai?
-Ia memo preguntá, cumadre.  Se bamo. 
Aí, como é natural do protocolo, e porque o Rolls Royce estava meio bichado, foi  trazida uma charrete para o passeio das Damas.
Ladeadas pelos Dragões da Independência, as duas senhôras mateavam e comiam nacos de charque e rapadura, enquanto apreciavam a beleza arquitetônica do Mestre Oscar. Carsulina admirada e extasiada, cumprimentava a todos e sorria. Ambas sorriam.
A charrete era puxda por dois garbosos alazões, suados, que troteavam com serenidade e elegância. Fazia muito calor, era janeiro. E a uma certa altura, um dos cavalos soltou um ruidoso peido que empestou o ar.
Carsulina arregalou os olhos e olhou para a companheira de passeio e sorriu apenas. A anfitriã, constrangida pela situação, correspondeu ao olhar de Carsulina com outro sorriso, meio amarelo e exclamou:
-Uai, lhe peço discurpas, cumadre, hehehe.
Carsulina dá-lhe um tapinha amistoso ao ombro e olhando para a Praça dos Tres poderes admirada, responde:
-Quéisso, cumadre. Não se apoquente! Eu inté havia pensado que tivesse sido o cavalo!

Tchurias Carsulínicas

Tchurias Carsulínicas

Tchuria, segundo Carsulina, é uma espricância que havéra de sê quando o acunticido ainda não foi, mas causo teje sendo, determina como será.  E ela tem várias. Fisiologia, astronomia, e historia são seus assuntos preferidos. Eis algumas delas.

Relação entre a fome e a tontura.

O que acontecem filho, quando o pessoa sente aquele vazio nas idéia, a tonturinha, causada pela fome é que o istâmo é ancim como uma várvola, um fole daqueles de assoprá o fogo na ferraria. Vosmecê mexe nele e ele chupa o ar se enchendo pra despois expelir de vorta. Do memo acontece quando o istâmo da peçoa tá vazio. Ele chupa o ar que tem nas manguerinha que levam inté nos miolo, que devem ser chamados de célebro. Pous então, o istâmo forma um vácuo e chupa o célebro pra baixo, e a a peçoa fica sem célebro, mentecapta, e tudo devorteia. Então, quando se alimenta, a bóia vai empurrando tudo de vorta e em poucas horas tudo vorta a foncioná dereito.
O que se deve tomar coidado, filho, é não esperar demais, pois daí o célebro passa do istâmo pro disintistino e se mistura com o contchúdo, e despois quando vorta pra cabeça, não se sabe mais o que vortou. Daí isso esprica munto bem as cousas que fazem, por inzempro, os político. Ficam muntas hora matutando e esquecem de se alementar. Daí...

quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

Birruga


(Causo inspirado numa biografia não reconhecida qaue meu amigo Marco Aurelio Brasil Lima fez de mim certa ocasião)
Pacard

Sou Birruga. Conhecido por Birruga. Me chamam  de Birruga. Minha história é triste, mas deve ser contada de pai pra filho para testemunho da bravura das pessoas que forjaram com tenaz de ferro a grandeza do Cêrro do Bassorão.
Nasci no Cêrro do Bassorão. Mas não fiquei no lugar a vida toda. Não senhor. Não fiquei. Teria ficado se me deixassem, mas não me deixaram. Meu comportamento me fez sair de lá muito cedo. Eu lembro bem. Tinha dois anos de idade. Era um guri novo. Bem novo. Com  apenas dois. Dois anos de idade. Mijava na cama. Ainda mijo.
 Lembro bem. Eu estava tentando parar de beber. Frequentava um grupo de  dependência láctea,  o TETA (Trabalho Especializado de Transformação do Aleitamento). Aí fui expulso de lá. Carsulina não estava naqueles dias. Tinha viajado para o estrangeiro. E depois foi para fora do país. O Cêrro era uma terra sem lei. Os mais fortes batiam nos mais fracos. E houve uma confusão por conta dumas vadias no bolicho do Tuiuco. Eu havia bebido muito. Não lembro de nada. Só lembro que saíram dois esfaqueados. E botaram a culpa em mim. Fui preso. Condenado a dezoito anos de cadeia, cumpri todos, e aos cinco anos de idade, saí, por bom comportamento. Tomei outro rumo na vida e arrumei um trabalho. Ganhava pouco, mas era digno. Por onze anos, carregava sacos de batatas para um armazém, onde me deixavam dormir aos fins de semana. Tempos duros, mas na vida de um homem de verdade, dureza é sobremesa. Não posso me queixar. Eram bons comigo. Me deixavam comer com o guri. Lado a lado. Depois, venderam o guri. Vou sentir saudade daquele burro.
O tempo passou. Voltei pro Cêrro com uns trocados no bolso. Um toco de canivete e um naco de fumo que troquei pelas botas. Uma bota, na verdade. A outra eu nunca encontrei. Mas servia para almoçar dentro dela.  Aí um dia passando pela igreja, ouvi um gemido nos fundos. Fui espiar. Sempre vou espiar quando ouço gemidos nos fundos da igreja.  Assiem sou eu. Meu nome é "espião". Era uma velha mijando. Achei uma falta de respeito. Tive que bater na velha. Fui preso de novo. Mais doze anos em cana. Aquilo já estava ficando enjoado. Fiz um acordo com o delegado e ele entendeu minha situação e pouco mais de vinte anos depois, me soltou. Acredito no dom da palavra. Passei a lábia nele, eu sei.  Me sinto culpado por isso, mas eu era um guri. Tinha seis anos. Tinha que me virar. me virei e lá estava ela: com os cabelos soltos ao vento, vestido branco e barba por fazer. Olhou pra mim. Olhei pra ela. "Se olhêmo". E sem dizer nada, fomos embora. Saí dali desgostoso e voltei a beber.
Bebi por mais oito anos. bebia dia e noite sem parar. Estava na miséria total. Aí encarei a situação e decidi: vendi as garrafas do que havia bebido. Vendi todas. Fiquei rico. E voltei pro Bassorão.
Não conheci mais ninguém e ninguém mais me conheceu. Melhor assim. Aí não precisei pagar os vales que assinei no bolicho do Tuiuco. Nem o que saí devendo no jogo de truco pra Carsulina e pro Frei Uomo.
Montei meu negócio e toco em frente. Confio no negócio. O negócio nunca me deixou na mão. Me leva longe. Me traz de longe.
bem, aprosa vai boa, mas é tarde e vai chover. Vou-me já que está pingando. Até a volta.
Upa! Upa! Bamo Negócio! Bamo mula! upa..upa...

terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

Tio Luca, Apolônio Lacerda e Carsulina

O porco

Apolônio Lacerda



Apolônio Lacerda era um indivíduo de meia idade, solitário, misterioso, muito religioso, beirando à beatitude em certas ocasiões. Não era má pessoa. Tinha bons sentimentos, era solidário nos infortúnios e sempre buscava uma palavra de conforto diante das adversidades. Mas era ranzinza. Do seu jeito ranzinza, levava a vida no vilarejo, buscando mais a companhia dos animais e da sua velha e surrada Bíblia, do que das pessoas em geral. Um homem cheio de mistérios, mas de boa paz. Deixavam-no quieto, pois tinham Apolônio na condição de um profeta, um conselheiro, cultivando por ele o mesmo respeito que tinham para com a primeira dama do Bassorão, Carsulina de Aragonés Fuentes Y Arrancatoco.
Certas ocasiões, Apolônio se punha em debates "tcholójecos" com o Frei  Uomo, sendo aparteado aqui e acolá por Carsulina, que se mijava de rir dos dois carolas, enquanto servia o mate da roda e fritava uns bolinhos pra mistura do café da tarde. Era um trio amistoso e bom de briga quando se tratava de temas ligados à natureza humana e seus deslizes. E um desses deslizes estava justamente com um certo Tio Luca que foi apanhado na tentativa de roubar um porco no curral da Carsulina. Tio Luca era bitata de nascença, trocava o S pelo V e  sibilava ao falar, principalmente quando ficava nervoso. Mas sempre tinha uma saída audaciosa para suas façanhas.
Carsulina ouviu um barulho que vinha de trás do rancho. As galinhas estavam asssutadas. O chumbregâncio, um cusco  brasino, feio como congestão de toresmo latia sem parar e se ouviu um guincho forte do porco no chiqueiro. Carsulina passou a mão na velha "espera um pouco", um trabuco de carregaar pela boca do cano, um lampião, calçou as botinas e saiu porta afora com a mão no gatilho pronta pra peleia, e berrou:
- Quem é o maleva que tá percurando afiná a voz e tomá um tiro de sal na bunda?
Silêncio. Carsulina levanta o lampião e dá de cara com Tio Luca, com um enorme porco nas costas, olhos arregalados - ele e o porco, já trocando pernas com o peso do bicho.
- Bunito, né mêmo, Tio Luca? Roubando porco!!!
Tio Luca arregala ainda mais o olho vermelho de cachaça, olha por cima do ombro assustado e exclama:
-Porco? Que porco?
E com a mão batendo no ombro como se tiresse um gafanhoto, dá uns tapinhas no leitão e diz ligeiro:
Ih, tira esse bicho daí! Tira esse bicho daí!
Carsulina passa-lhe um pito, mas por ser uma boa alma, não o despede sem que entre no rancho e se abasteça com bolinho frito, chá de mate, um revirado de ovo com farinha de mandioca, o tal "Tio Bento Ruivo", e ainda mete-lhe uns trocados no bolso para que vá em paz.
No dia seguinte, o episódio caiu no esquecimento, pois logo cedo aparece Apolônio com uma moranga embaixo do braço, e um saco de milho verde nas costas, batendo no portão de Carsulina:
- Ó de casa, ermã! Leluia! Grória! A Paz, Carsulina! Prenda o dóga que venho em paz, ermã!
- A paz, ermão Polônho. Se acheque que o dóga é manso e foi capado, siô!
-Mas o meu medo é só que me morda ermã!
Carsulina dava gargalhada e já puxava um banco e acomodava o amigo para uma prosa matinal.
- O amigome acumpanha num cuscuz com leite gordo?
-Apolônio ergue uma sobrancelha e esboça um sorriso pela metade, o que sendo quem era, equivalia uma gargalhada inteira!
O amigo me aperpare o fogo enquanto vou ali no galinehiro arrecoiê uns ôvo. Deixei o Indéz lá e as franga ponháro uns ovo pra nosso revirado. O leite ja tirei e o cumpadre só arrepare que não derrame, que já vorto.
Apolônio junta uns gravetos e sopra umas brasas que ficaram entre as cinzas do dia anterior, fazendo logo um fogo bicharedo para esperar o cuscuz da Carsulina, prato famoso no Bassorão e além fronteira.
Carsulina volta com uma cesta de ovos e passa na horta para catar uns temperos para o refestelo matinal na companhia do amigo. Faz um mexido de cuscuz com ovo e cebola frita, um café de chaleira à moda do campo e serve o amigo, que nem fala para não perder nenhuma colherada da delícia matinal.
Terminado o desjejum, Carsulina arruma a mesa, lava a louça, Apolônio busca lenha, deixam tudo em ordem, e sentam-se na varanda apreciando as coxilhas que emolduram o lugar ao som das cigarras e dos sabiás entre o arvoredo. Mergulham no silencio com olhar fixo no cenário, e Carsulina quebra o silêncio, dando início à prosa.
- O Cumpadre havera de me dizer alguma cousa, pois não?
-Vaticínios, ermã. vaticínios! Auguro que pecaminosos pensamentos devorteiam os lares nesta caminhada dos dias, prenunciando o apocalípes! Vigia, ermã! vigia!
Carsulina arregalho os olhos e pergunta:
-Tão grave ancim, cumpadre? Cousa cabulosa deveras?
Apolônio balança a cabeça consentindo, sem tirar o olhar travado no horizonte.
-Vosmecê vaticinou antes ou dispois do trago, cumpadre?
-Sou abestêmeo, ermã! Sou crente! Não me entrego ao víuço nem às conuminâncias!  Não compaquetuo e dou nome ao pecado (e abraça sua velha e surrada bíblia). Leio nas Sagradas Escrituras que cousas cabulosas hão de acontecer e tremo por medo de me perder, ermã.
Carsulina era debochada e caborteira. Mas não brincava com a  fé alheia nem fazia troça das coisas da Divindade, Isso lhe interessava sempre.
-E o cumpadre percurou o Frei Uomo?
Apolônio deu um pulo.
- Aquele embachadô do demo? Lacaio da besta?  E vosmecê não tem tenência de que  o chefe dele é a besta do apocalípes? ..Bão. Pois foi duma prosa com ele que resorvi percurá a ermã. Ele me rogou uma praga e me respingou água xuja nas venta falando umas cousa feia em ingrêis...
-Latim, cumpadre. latim! - emendou Carsulina.
-Também! Fui convertê ele mas o ome amuntô numa onça quando falei que ele era bidiente à besta do apocalípes, e me disse que besta era eu.
Carsulina fez silencio e matutou. Tinha ouvido falar da rivalidade entre creentes e católicos romanos, mas não sabia muito dos argumentos de um ou de outro lado. Contudo, tinha que acabar com aquela rivalidade pela paz do Bassorão, que era responsabilidade sua. Tanto Apolônio quanto o Frei eram seus amigos, e uma rixa não contribuia em nada com a tranquilidade do lugar. Matutou e falou com voz mansa ao amigo iracundo.
- Filho! Vosmecê há de cumprendê que rilijãm é como cuéca: cada um veste a sua pópria pra mor de não cheirar os traques alheios. Vosmecê ha de cumprendê que Frei uomo tem respeito por todas as almas, memo que cheje invanjélico ou católco. O frei só cutuca com vara curta os pulitico, que são chujo memo. E vou le contar um segredo que vaticinei certa noite nas minhas matutação: Eu sei quem é a besta da apocalípes!
-Apolônio deu um pulo, arregalou os olhos, ergueu os braços ao céu e exclamou:
-LELUIA!!! Grória! Diaga ermã, quem é?
-Bem, filho. Na verdade ele mora aqui no nosso país. Usa bigode, e senta num trono de chujêra ja fás uma quarentena ou mais de anos...é o tar que era, é e vortou a ser...bem do jeito que tá no apocalípes...
Apolônio baixou a cabeça e fez uma longa oração. Carsulina o acompanhou...