sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

O Causo das gualhaba



O Causo das Gualhaba

Era uma quinta feira. Poderia ter sido num domingo. Mas não. Foi numa quinta feira. Pela noitinha. Ainda com cantinho do olho virado para o poente, um filete de luminar dourava a água parada do açude cercado de açucenas rosadas se espelhando como ninfas antes do repouso. O perfume das rosas d'água se espalhava pelo entardecer levado pela cantilena tristonha do vento minuano, tecendo arrepios nas gralhas que se acomodavam para o repouso, acomodando-se aos ninhos e gastando alguns últimos gritos num estardalhaço cortado pelo agouro de uma coruja que impõe silêncio para festejar a noite. Tudo silencia.
Ao longe, os lampiões se acendem e as chaminés vomitam pequenas faíscas entre a fumaça que sobre tremulante e some entre as nuvens da noite. O saboroso perfume de couve e batatas inebria os passantes que se convidam para a ceia de logo mais. Conversas silentes se entrecruzam em voz baixa como que numa reverente saudação ao repouso do Cêrro do Bassorão.
Carsulina, lia uma bula de linimento que encomendara da capital, enquanto esperava pacientemente que a ceia ficasse pronta. Abaixa-se para apanhar um naco de lenha e atiçar o fogo, quando  percebe que algo está diferente na noite. Não é a noite. Igual a todas as anteriores. Não é o dia: quinta feira, afinal é apenas quinta feira. O Minuano sopra ainda do mesmo lado e balança as mesmas folhas.  Os gatos  enlouquecem nesta hora do dia. Os piás também. Carsulina inclusive tem uma "tchuria" sobre a ligação de gatos e piás
:-Gatos e piás, filho, são uma cousa cabulosa por demais! Quando o sol devorteia os morro, os gatos ficam perdidos procurando o dia e relampeiam aqueles zoião pra mor de se acostumá com a noite, e de igual modo, os piá ficam serelepes porque os ormônho se entreveram com os norônho e nessa confusão, ningtuém sabem quem é que manda nos corpo das criatura. A solução pros gatos é sem dúvida a capação. E talvez foncionasse também com os piá!
Mas voltando às falas dessa prosa, pois foi que no alto do anoitecer, ouve-se um gemido sofrido vindo do alto do morro da pururuca. Um uivo de agonia que  fez tremer de arrepio os moradores do Bassorão. O lugar já era um amontoado de bizarrices e mistérios, mas assim, com uivos e gemidos, nada podia ser comparado àqueles uivos, que por vezes  se estendiam por muitos minutos, e outras eram gritos espaçados. Não parecia ser graxaim. Nem mão pelada. Bugiu, àquela hora já dormia. Os quatis davam gritinhos e gemidinhos baixos. Ave nenhuma gritava daquele jeito. Porco também não, nem mesmo quando era capado  a malho. Um mistério.
O Tuiuco chega apavorado ao rancho de Carsulina e com os olhos arregalados, pergunta:
- Madrinha! Vosmecê  tem ciência do que se trata? Acauso é isprito, madrinha?
-Carsulina dá uma baforada no paiêro, sem levantar os olhos e raciocina:
-Filho! Isprito num pode ser. É quinta feira. Isprito acho que não é não. Arma penada também não, pois inda fais treistonnte que encomendei que o Frei Uomo rezasse treis missa e ele rezou no memo dia. Então, arma penada não havpera de ser, filho. É côza misteriosa. Carece de granjeá um povo pra mor de ver o que é. Senão ninguém dorme nessa vila hoje.
E sem levantar os olhos, dando mais uma baforada no paiêro, Carsulina acerta uma cusparada em cheio  na orelha do gato que dormia. Com o "banho", o bichano dá um pulo e um berro e desata a correr porta afora, sob as gargalhadas da velha marota.
Tuiuco sai e volta pouco tempo depois com um pequeno grupo de voluntários prontos para a peleia. Contra o que, ou contra quem, isso era um mistério.
Perto da meia noite, um grupo carregando tochas perambula pelos caminhos do Morro das Gualhaba, um pequeno pomar de goiabas nas terras de Carsulina. Uns carregavam enxadas. Outros levavam porretes. Frei Uomo bicava um torresminho, molhava o beiço numa guampa de canha e benzia o caminho, cantarolando uma ladainha em algo parecido com latim. Latim de almanaque. Rezava assim:
- Quae Patus anorum refrescatum, lacuus sunt....
E o povo dizia: Amém!!!
- Et non ejaculantum a esmuuumm...
- A-méeeemmm!
- In hac omni piranhas cornu viriiiii...
-A-méeemmmm!
E a procissão seguia. Parecia um Oficio de Trevas daqueles que acontecem em Gramado na Semana Santa, Paus e porretes, tochas e murmurios, e claro, uns nacos de torresmo com uma cachacinha pra aquecer a urbe, porque ninguém era de ferro. E também pra encorajar, Não se sabia o que poderia ser encontrado. Cogitava-se inclusive a idéia de que fosse um disco avuador. Ou talvez um etê Cétera, coisa e tal..
Porém algo estranho acontecia com carsulina. Enquanto todos arregalavam os olhos em silencio, a cada uivo, ela desatava a rir e dizer baixinho:
- Toma que é pra não se metê, veiáco!
estranhavam isso, mas ninguém abria a boca. Até que alguém grita: 
- É  daqui! É daqui! Atrás da pedra! É o Birruga arriando e gemendo!
Enfiaram os lampiões e tochas na frente do pobre do Birruga, que já estava de cócoras no terceiro montinho, com os olhos vermelhos e arregados, branco de susto, aos berros de dor de barriga.
Olhou para a Carsulina e com os olhos cheios de lágrima, exclamou:
-Me adescurpe, madrinha. Nunca mais mexo no seu gualhabal!
Carsulina exclamou baixinho:
-Bão memo! Perciso inconomizá daquele purgante que o boticário mandou pra eu dá pras vaga constipada!
E também, sarvo meu gualhabal desses veiáco! Dá um trabaião inocular purgante numa gualhaba!

segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

Carsulina e os marimbondos atômicos



Fazia frio no Cêrro do Bassorão. Poucas casas tinham ainda as luzes tremulando dos candeeiros de corosena àquela hora da noite, quase dez, o que no Bassorão equivale à alta madrugada. Todos dormem cedo. Especialmente nos dias frios. Menos fogo nos fogões de tijolos com uma chapa crepitanto com gotas da água que fervia na cambona e saltitava aos pingos, num frêmito dançante até se esvair em nada. Chiado contínuo em contraponto com o vento minuano lá fora. Quase todos dormiam. menos uma pessoa: Carsulina!
A Dama do Bassorão terminava suas tarefas do dia, arrumava as matulutagens e deixava um nó de pinho no braseiro, cobrindo-o com cinza para que um tição durasse até a manhã logo adinte, e iniciava suas rezas da noite. Veiáca, sim. Ímpia, jamais!
Uma reza, duas rezas, um paiêro... uma esticadinha até a janela pra cuspir, uma mijadinha no penico embaixo da cama, e o sono chegou. Pensa nas coisas do dia, pensa nos afazeres do dia seguinte...e desaba a dormir.
Um graxaim choraminga ao longe. Uma coruja pia. Grilos silenciam devagar..no banhado ali perto a saparia agoura e finalmente todas as luzes se apagam. O Cêrro dorme, silenciosamente.
Um risco luminoso cruza o céu em baixa altitude, acompanhado de um zumbido contínuo e veloz. O silêncio continua. Mais sapos coaxando. Grilos. Outro risco luminoso. Outro zumbido. E mais um. Um atrás do outro, seguidos, sem parar...agora uma constelação inteira deles e um zumbido ensurdecedor. As luzes se acendem e tremulam. As janelas se abrem. O povedo sai de olhos arregalados para ver aquilo. Padre Uomo bebe uns goles e se benze, e benze o vilarejo. Arregala o olho e olhando firme para o vaivém dos riscos luminosos, prenuncia uma apocalípsia, termo que criou para falar em alguma catástrofe.
-É a apocalípsia fulgurante dos apoteóticos e efêmeros seres celestiais! - Exclamou benzendo tudo com cachaça, sem se dar conta. - E emendou:
- A pléiade ululante desatina-se sobre os pecadores e os sete ais da Revelação há de refestelar-se nas ferçuras dos que não se emendarem! - apontando o dedo em contínuo movimento para os paroquianos apavorados.
Enquanto isso,  o vaivém das luzes dançando e tremulando no breu da noite, desenhava contornos em circulos e pétalas de flores entre o vazio das estrelas, que entre medo e êxtase, pasmava a todos aque presenciavam o espetáculo. O criançada pulava de alegria, enquanto os mais velhos ralhavam com os piás e as velhas se esgueiravam de canto, o tal revesgueio, e algumas chegavam a se mijar de pavor. Outras porque eram porcas mesmo e aproveitavam a ocasião para aliviar a bexiga num canto qualquer do terreiro.
Lá no aconchego do velho catre perfumado com alecrins e massanilha, repousava Carsulina, a Leide das coxilhas airosas das terras do Bassorão. Porém, o ruidoso vozerio a fez despertar de seus vaticínios, e também ela saiu a ver o que estava acontecendo.  Olhou para um lado. olhou para outro. Acendeu um paiêro. Cuspiu para o lado. Olhou de novo e deu uma gargalhada ruidosa.
Todos olharam espantados, mas aliviados também, pois a Madrinha havia desvendado com certeza todo o mistério, e mesmo sem compreender sabiam que poderiam dormir em paz.  Porem a curiosidade era maior que o medo, e pouco tempo depois se enfileiravam na casa da velhota para sbaer dos fatos. E ela explicou, pacientemente, como sempre fazia.
-Filhos! Vosmeceis não hão de carecer dormir com medo de nada, causo de quê esses luminares baruientinhos nada mais são de que um cruzamento que tenho feito de marimbondo com vagalume pra mor de produzir marimbondos atômicos. A cousa fonciona ancim: Um marimbondo atomico ferroa uma peçoua, digamos, no nariz. isso vai inchar. Dói um pouco, mas com cachaça e mistruis, logo passa. e esse inchume também vai ser luminoso. Aí a peçoua em questã se torna uma lamparina andante. Não carece mais de corosena e o mundo terá menas fumaça. Isso é inerjia sustentáver. So tou cafifada com uma côza: quem será que srtô os bichinho?
E satisfeitos, todos foram dormir. Inclusive duas figuras sinistras que passaram a noite perambulando pelos campos à procura de mais marimbondos para soltar, por mandado de uns gringos que cavocam buracos em busca de alcatrão.

CARSULINA - A Leide do Bassorão


Carsulina - A Leide do Bassorão


Carsulina De Aragón Fuentes y Fuentes Arrancatoco, ou como é mais conhecida, Carsulina Arrancatoco, é uma senhora que vive no Cêrro do Bassorão, distrito de Santa Creusa do Malacara, EM, em terras brasileiras. Nasceu pequena e de olho arregalado, e contam seis testemunhas confiáveis que ela piscou com um olho só quando viu o tamanho do treisontão da parteira que a trouxe à luz de vela. Eram entre tres e quatro da manhã, e ao primeiro canto do calo, registro oficial de hora noturna do vilarejo, a parteira terminava seu serviço e acendia um palheiro enquanto preparava um mate. Logo, como de costume, uma roda de comadres trocava idéias sobre coisas da lida diária, tais como capação de gato, receitas de boras de polvilho, ou o melhor método de dar uma boa sova de vara de marmelo nos piás. E Carsulina teve seu primeiro colóquio entre as comadres, quando perceberam que ela também enrolava um palheirinho e pitava às baforadas enquanto esperava sua vez no mate.
Nos primórdios do vilarejo de Cêrro do Bassorão, não havia certeza quanto ao funcionamento político e a desordem ideológica era uma constante entre os políticos do local, que ora pendiam para os políticos do município sede, ora se tornavam ferrenhos separatistas, não apenas municipalistas, mas como também estaduais e os mais radicais, desejavam mesmo a separação do Brasil, gerando muitas tentativas de golpe e muitas conspirações. Houve até um preso político, o Boticário Gerardo Cambuim, que foi visto entrando escondido altas horas da note pelos fundos do armazém de Tuiuco, o que o tornava suspeito de conspiração em alto grau. Só foi liberado quando um vizinho de Tuiuco entrou em sua defesa, confessando que fora ele a chamar o boticário para que lhe aplicasse um cataplasma de mistrunço com cachaça por conta de um entorse numa afoita aventura com a Crotilde, professora da escolinha da vila. Crotilde foi transferida para outra escola e o caso foi abafado. Não era portanto uma conspiração, mas uma constipação marota.
São Tenente da Venta Xuja



Este é o nome da paróquia do lugarejo, cujo capelão é um frei atarantado da idéia e louco por cachaça com rapadura e torresmo de tira gosto, goloseimas que não podem faltar durante as longas horas de confessionário. Enquanto ouve atentamente as lamúrias das velhotas carolas em seu carretel de pecados, ora cometidos, ora prontos para cometer, o velho frei Uomo dalle mille scorregge, mais conhecido como Frei Scorregionne, vai mastigando um naco de toucinho, um torreminho, bebendo uns goles de canha e dando seus palpites na vida alheia. Frei Uomo e Carsulina são grandes amigos e parceiros de truco e caçadas de capivara e outros insetos.