quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

CARSULINA EM BRASÍLIA

Carsulina em Brasília


O país estava mudando. O mundo havia mudado. E carsulina também mudou. Mudou as carsola. Afinal era janeiro. Em janeiro as pessoas normais tomam banho. E quem toma banho, muda de roupa. Pelo menos a de baixo. Os trajes menores. carsulina mudou. Porque o mundo havia mudado. 
Não era apenas a benzedeira e parteira do Cêrro do Bassorão. Era tamb´m madrinha daquele povo todo. Ou de batizado, ou de casamento. E todos lhe deviam respeito. E afeição. E cumpriam fielmente com as obrigações. Não passava um único dia sem que uma alma confusa não estivesse às voltas com algum "consêio" de Carsulina. Ela aconselhava de tudo e a todos. De unha encravada à constipação, dor no "figo", inchume, "churrio" e outros malefícios que apareciam. A todos, carsulina recebia sempre com uma hospitalidade que só existe ainda em lugares como o Cêrro do Bassorão. Encravado em algum lugar esquecido, onde também esquecida fica a rede de intrigas das cidades grandes. O Bassorão era um daqueles lugares que a gente sonha morar um dia, num daqueles dias que o mundo desaba nas nossas costas e queremos nos enfiar numa toca até que o mundo passe. A toca existe. É o Bassorão. E quando encontrá-lo, não será dificil achar um rancho de tábuas cruas envelhecidas e acinzentadas pelo tempo, com uma chaminé torta fumegante, atrás de uma cerca de taquaras que protege uma lavoura recheada de frutas, flores, verduras e simpatias. E dentro dele, uma senhorinha que lê antigas edições das Seleções, que ela chama de "Seleção do Redigesta". Lê e relê velhas historias e as conta à piazada que devorteia o rancho à espera duns caramelos.
Carsulina foi nomeada intendente do Cêrro do Bassorão, mas sua jurisdição se estendia muito além da Coxilha Bermeia, cruzando o Arroio dos Caborteros e avançando sobre mais dois vilarejos menores encravados entre os capões do Santa Esmerarda, outro arroio que se encontra com o caborteros. E sob tal condição, foi chamada à sede do governo central para  dar um parecer sobre uma verba para a cachaçaria do Minhoca, petição antiga e que agora, com a troca de governo, parecia estar proxima de ser liberada.
Iria de charrete até a sede do município, e de lá, de caminhão leiteiro até a capital da província, onde tomaria um avião até a Capital federal. A viagem seria longa. Dois dias até a sede e tres horas até Brasilia num vôo direto.
Na capital, seria recebida pelo Deputado  Gaudelino, que a acompanharia até o Ministério, e depois iria almoçar com "A Home". Ela mesma: A Home, a chefa. a capitona, a guasca, a que manda prender e manda soltar. A Presidenta.
Carsulina prepara uma guaiaca recheada de goloseimas para se distrair na viagem: charque de capivara, doce de gila, um torresminho, pão de milho e umas bolachas com canela, e uma guampa de café com leite. E bota o lombo no mundo rumo à capital.
Lá chegando, cumpre suas obrigações no Ministério, e ruma ao Planalto para o tal almoço. Mas oh, que surpresa!
Carsulina nunca foi de luxo, e na sua imaginação, seria recebida com um cumprimento simpatico, um quebra costela meio timido, um cantinho no fundo da mesa e só. Mas nada disso aconteceu: Carsulina foi recebida na porta do Palácio, melhor dito, na Rampa, pela Chefa, ela mesma: a Presidenta!
Abraço daqui, beijinhos dali, um tabefe nas costas acolá, e Carsulina lascou:
-Bão?
-Bão, uai!
- Pous então te meteste na peleia mesmo, cumadre? Não tiveste medo da cousa?
- Uai, sô! - Respondeu a chefa.  Mór diquê eu ia tê mêdo, uai? Aqui é tudo capiau e 
eu sô minêra, uai. Custumada a capá porco a tapa e dispois mandá pra banha. Tenho medo não, uai.
E emendou:
-Iscuita, Carsola! Ocê tá com munta fome, uai?
-Não, filha. Vosmecê tá?
-Ô não, uai! Ontonce, bamo dá uns devorteio na capitar mor de eu mostrá a cidade procê, uai?
-Ia memo preguntá, cumadre.  Se bamo. 
Aí, como é natural do protocolo, e porque o Rolls Royce estava meio bichado, foi  trazida uma charrete para o passeio das Damas.
Ladeadas pelos Dragões da Independência, as duas senhôras mateavam e comiam nacos de charque e rapadura, enquanto apreciavam a beleza arquitetônica do Mestre Oscar. Carsulina admirada e extasiada, cumprimentava a todos e sorria. Ambas sorriam.
A charrete era puxda por dois garbosos alazões, suados, que troteavam com serenidade e elegância. Fazia muito calor, era janeiro. E a uma certa altura, um dos cavalos soltou um ruidoso peido que empestou o ar.
Carsulina arregalou os olhos e olhou para a companheira de passeio e sorriu apenas. A anfitriã, constrangida pela situação, correspondeu ao olhar de Carsulina com outro sorriso, meio amarelo e exclamou:
-Uai, lhe peço discurpas, cumadre, hehehe.
Carsulina dá-lhe um tapinha amistoso ao ombro e olhando para a Praça dos Tres poderes admirada, responde:
-Quéisso, cumadre. Não se apoquente! Eu inté havia pensado que tivesse sido o cavalo!

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